Fernanda Castro apresenta a fantasia sombria “Lágrimas de Carne”

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As obrigações de uma carpideira vão além de prantear os mortos. É preciso purificar pecados, libertar mágoas, guiar a alma até a beira do mundo — um trabalho proscrito e desgastante. Para contornar isso, uma carpideira manipula seus filhos adotivos: Suindara, a quase-mulher quase-coruja; e Carcará, o quase-homem quase-falcão — gêmeos de forças opostas, tanto em aparência quanto em princípios. Mais eis que surge uma alma que a garganta carniceira de Carcará simplesmente não consegue digerir — e a relação conturbada entre mãe e filhos é colocada à prova quando a minúscula cidade agreste de Serrita vivencia uma febre do ouro.

 

Publicada pela Editora Dame Blanche, a fantasia sombria de Fernanda Castro, “Lágrimas de Carne”, explora elementos fantásticos em uma história sobre relações conturbadas.

 

Para entender mais sobre a obra, conversamos com a escritora. Confira a entrevista:

 

Como surgiu Lágrimas de Carne?

 

Sempre gostei de usar a fantasia para expressar sentimentos e relações difíceis de colocar no papel, como o luto, o dever, a insegurança, mesmo a amizade ou o amor. Gosto dessa “crueza” que o elemento fantástico traz, onde a gente pode ignorar as convenções sociais do cotidiano e mostrar coisas que normalmente seriam suprimidas. No início do ano, fiz uma mentoria com a autora sul-africana Kerstin Hall pelo programa da SFWA, e nós, estando ambas em regiões “distantes do miolo” de nossos respectivos mercados editoriais, conversamos muito sobre como, às vezes, as pessoas esperam uma visão exótica e pasteurizada das nossas referências. Então decidi que, como exercício, eu escreveria uma história meio alegórica para representar umas coisinhas que eu tenho dificuldade de entender, haha, e que faria isso usando elementos importantes para mim. O resto foi vindo por consequência. Soa até meio egocêntrico dizer isso, mas até agora Lágrimas de Carne foi a história que eu mais internalizei antes de escrever. 

 

Além de fazer uma ponta na história, sua avó ainda é parte integrante das inspirações para a narrativa. Como a casa dela, que aparece na capa do livro. Como foi pegar referências tão pessoais ao desenvolver uma narrativa de fantasia?

 

Sabe tudo isso que eu falei sobre relações difíceis de explicar? Bem, a minha avó é meio que um símbolo dessas coisas. A história dela é muito marcada por lutas e lutos, por falhas e virtudes, por versões diferentes para o mesmo acontecimento. Sempre brinco que um dia vou escrever a biografia dela e que não vou saber nem em qual gênero encaixar o livro, indo da comédia pastelão ao suspense. Então foi impossível não trazê-la, nem que fosse numa pontinha, para marcar essa história que fala de um jeito tão pessoal sobre diferentes visões dentro de uma família. Além disso, as temporadas de férias que passei com a família na antiga casa da minha avó, no interior do estado, eram sempre épocas maravilhosas e, para a Fernanda criança, bastante mágicas. Não poderia ter cenário melhor. 

 

 

Você destaca como um dos pontos de partida da história o conceito das carpideiras. Que para quem não sabe, trata-se de uma profissional cuja função é chorar em enterros de mortos alheios. Como esses conceitos iniciais foram trabalhos na criação? Como foi seu processo criativo?

 

Uma das coisas interessantes da cultura brasileira — e pego aqui um recorte especialmente nordestino — é a junção natural e entranhada do elemento fantástico com a religião católica. O que é engraçado, porque teoricamente os preceitos do catolicismo negam tudo isso. Ainda assim, colocamos Santo Antônio de cabeça para baixo dentro d’água para atrair marido e cantamos “meu coração é só de Jesus” quando estamos com medo de assombração. E acho que o ápice de tudo isso é a figura dessas mulheres muito devotas e voltadas ao social: as rezadeiras, as benzedeiras, as carpideiras. Elas são tanto enfermeiras quanto conselheiras, guias espirituais e às vezes até psicólogas de uma comunidade. E estão sempre envoltas nessa aura de mistério: é a avó que acerta o sexo do bebê só de olhar para a barriga, é o xarope milagroso feito sabe-se lá de quê, capaz de curar desde mau-olhado até pneumonia. Soa bem próximo do que se espera de uma bruxa, não acha? E eu, que tenho uma dificuldade TREMENDA em aceitar a finitude da vida, sou completamente fascinada por carpideiras. A partir daí, resolvi trazer a história de vez para o campo da fantasia com outro elemento que deixa meu coração quentinho: aves. De preferências aves mágicas. E uma dose de drama. Desse ponto em diante, foi basicamente quebrar a cabeça até amarrar todos os fios do enredo.

 

O livro é único ou terá continuação?

 

Lágrimas de Carne é um livro único. Porém, acho que muitos elementos dele podem aparecer em outras histórias. Eu adoraria revisitar certos personagens em outros momentos da vida, em outros cenários. Expandir o que o leitor conheceu ali. (E fanfics! Eu adoro fanfics!)

 

Sempre abrimos uma última pergunta que na verdade é uma oportunidade:
O que sempre quis responder sobre o livro e ninguém – ainda – não perguntou? Nos diga a pergunta e a responda.

 

Já que Lágrimas de Carne nasceu como um jeito de representar temas complexos em palavras, como a morte e a lealdade, a fim de entendê-los melhor… Você considera ter obtido respostas após o término do livro? Espera que os leitores cheguem a alguma conclusão?

 

 
Spoiler: eu terminei o livro com ainda mais dúvidas, haha. Mas com perguntas melhores, o que é importante. Acho que minha maior realização seria dar aos leitores um estudo de caso. Algo que, diante de uma situação parecida na vida real, uma pessoa pudesse lembrar e usar como “material de apoio” para se guiar, uma metáfora para entender o outro. Longe de mim afirmar que consegui, mas meus livros favoritos são justamente os que costumam passar essa sensação.

 


 


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