Denis Melo revela detalhes da criação da HQ Teocrasília – Distopia retrata um Brasil tomado pela religião.

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Teocrasília fala sobre um futuro distópico não muito distante. A bancada religiosa da política nacional domina o país após um episódio que ficou conhecido como “Revolução da Palavra” estabelecendo assim um regime teocrático.
 

O quadrinho de Denis Mello, que ganhou nova edição pela Editora Guará, apresenta Vicky, Yuri e Gambino, aliados na batalha contra a tirania. Repleto de paralelos possíveis com a história recente do país, a trama promete suspense e reviravoltas. 
 

Para conhecer mais sobre a criação de Teocrasília e como será a publicação pela Guará conversamos com o quadrinista. 
 

Confira a entrevista: 
 

– Como surgiu Teocrasília?
 

Teocrasília surgiu em Março de 2016. Eu queria terminar um zine chamado “Copa Negra” que havia ficado pela metade uns anos antes, mas os originais e o roteiro manuscrito simplesmente desapareceram. Fiquei uns 3 dias remoendo a tristeza de perder esse material (nunca perdi nada desde o início da carreira), pensando sobre outros temas políticos que eu gostaria de abordar. Durante as manifestações de 2013 eu estive muito ativo mas produzia ainda o Beladona, minha HQ anterior e havia me prometido que meu próximo trabalho faria mais do que eu poderia fazer nas ruas com atuação direta em matéria de atuação política. De repente a história veio quase  toda na minha cabeça, o plot, os personagens, foi coisa de sentar e começar a escrever aquela avalanche. Eu queria terminar um zine de 24 páginas acabei inventando uma série gigantesca. Ao longo daquele ano ainda dei uma boa lapidada em detalhes e lancei um jornal prólogo bem interessante na CCXP, mas só comecei a desenhar o quadrinho na França em 2017.
 

 
 

– Como é fazer um trabalho que fala de religião na política, no Brasil?
 

É gratificante sentir que estou mexendo num tema que é considerado espinhoso mas que ao mesmo tempo é tão urgente e que estou fazendo isso de forma muito cuidadosa e consciente. Eu não ataco nenhuma religião específica, pelo contrário, quando toca em religião de forma direta é para chamar atenção para necessidade de liberdade religiosa seja qual religião for, o importante é respeitar o próximo. O problema é que alguns líderes utilizam a fé alheia para instigar multidões com um discurso nada cristão impregnado de violência contra o diferente por uma questão de poder, status, dinheiro… No que toca em religião o quadrinho é mais sobre isso, sobre esses homens pequenos e mal intencionados que não hesitam em roer o delicado tecido social em benefício próprio, de seus egos e bolsos. Mas é uma série que tem um desenvolvimento delicado e sem pressa, mas adianto que em algum momento, ainda distante, isso estará mais no holofote.
 

Com relação à reação do publico, por diversos motivos acabei operando numa bolha muito reduzida até aqui, mas nas vezes em que fiz financiamento coletivo patrocinei postagens que furaram minha bolha e recebi um forte hate, inclusive muitos monarquistas (que naturalmente são religiosos que associam estado não só a um rei como também à igreja) e muitos outros que diziam que esse cenário era seu sonho, principalmente muitos bolsonaristas fervorosos. Mas claro que são um bando de trolls que dão opiniões ou fazem ameaças sem nunca terem lido uma linha da HQ, então eu simplesmente ignoro, não me abala e nem me diz nada. Quando pessoas que LERAM de fato o projeto tem algo a dizer, eu dou atenção e respondo e desses até hoje tive respostas muito positivas, inclusive de evangélicos.
 

– De 2016, quando foi lançada pela primeira vez para cá, o que observa de diferente no cenário que serviu de inspiração e na recepção de sua arte?
 

Bom, o cenário do mundo real acompanhou muito de perto o cenário da minha HQ. Quando escrevi a Dilma era presidente e quando lancei o prólogo Crivella sequer havia assumido como prefeito do Rio ainda. Nesse prólogo eu narro sobre como o cenário pós-impeachment leva a uma grande e violenta polarização e a uma eleição muito equilibrada vencida pelo Capitão Malenda que é claramente uma apologia ao Bolsonaro (embora ele não seja um vilão estúpido como o Jair, ou não teria graça a história). A partir dessa vitória vemos uma transição gradual de poder para uma junta dos pastores mais poderosos e influentes do país, sob o slogan “Deus acima de tudo e todos”. Isso foi publicado em 2016 e hoje temos o Bolsonaro com seu ministério bizarro e todo esse círculo político confuso e esquizofrênico que vivemos. Eu não acredito que seguiremos os passos do quadrinho, tendo um regime religioso instaurado ao pé da letra, mas qualquer passo nessa direção é prejuízo e acho que já demos vários nestes últimos anos com uma bancada da bíblia crescente e com cargos no executivo sendo um sonho cada vez mais real. Eu cresci em São Gonçalo, vi a Praça Chico Mendes que tinha 3 quadras esportivas, quiosques e pista de skate ser destruída e dar lugar à Praça da Bíblia alguns anos depois de abrirem um enorme templo da universal na região. Uma praça que foi cercada por grades e trancada ao público, que foi superfaturada e depois abandonada, que matou um espaço de convivência importante de uma cidade que tem pouquíssimo lazer e beira a miséria e o abandono do poder público. O voto de cabresto religioso nessa cidade elegeu e reelegeu uma prefeita que era a síntese dos políticos de Teocrasília: abutres que não se importam com a fé alheia e sim com o que vão ganhar ao explorar o fiel/trabalhador mas usam medos instilados no coração das pessoas para manipular suas ações e pensamentos. Eu vi a expansão dos templos de fundo de quintal. Na subida do meu morro abriram 5 templos de garagem em um espaço de 2 quadras. São Gonçalo e a periferia do Rio foram um laboratório do que começou a se alastrar como fogo em palha depois e é um perigo que cresce a cada novo ciclo eleitoral: sujeitos que vendem a imposição da tradição de alguns como política pública para todos.
 


 

– Como será a publicação pela Guará?
 

Será mensal! Inicialmente digital por conta da pandemia, mas início de 2021 já devemos retomar os planos de impressão e distribuição originais. A ideia é publicar 2 temporadas inteiras por ano, ou seja, a cada 6 meses fechamos uma temporada. A primeira temporada que se iniciou em Julho e irá até Dezembro de 2020 trará os 4 capítulos que eu havia publicado compilados num livro anteriormente e 2 edições especiais que eu havia publicado como zines antes. Ou seja, essa primeira temporada será toda de republicação do que eu já havia impresso antes. Inclusive vale lembrar que aproveitamos esse relançamento para publicar gratuitamente também uma versão digital do prólogo de 2016 cuja versão física esgotou a versão física.
 

A partir de Janeiro serão lançados os capítulos absolutamente inéditos, que foram produzidos já sob o guarda chuva da Guará. Eu estou muito animado porque sei que o acordo que fizemos foi bem diferente do que normalmente uma editora oferece aos autores aqui no Brasil. Minha dedicação para manter esse ritmo de publicação precisa ser exclusiva ao projeto e a editora me garantiu alguns meses de segurança para poder trabalhar com tudo no Teocrasília. Então esse ano fechou a segunda temporada e garantimos a publicação até o meio de 2021. Mas para que a 3º temporada comece a ser lançada em Julho de 2021, é importante conseguirmos uma média boa de leitores por mês até o fim deste ano, pois se não estiver vendendo bem o suficiente, eu não recebo bem o suficiente e corremos o risco de faltar grana pro projeto continuar andando. Mas estou feliz e seguro de que nesse momento, estar com a Guará está sendo o melhor pra mim e pro projeto. Teocrasília não é um quadrinho apenas para leitores de quadrinhos, espero que possamos furar a bolha pois é um material que conversa com um momento sensível para todos os brasileiros e a reflexão que a obra traz merece a chance de alcançar mais gente do que eu jamais conseguiria alcançar sozinho. Temos a chance de publicar uma série por 6 temporadas de 6 meses cada! Cada episódio tem 30 páginas. Tratando de mercado nacional é com certeza a coisa mais ambiciosa que eu já vi, e considerando todo o feedback que já foi feito sobre Teocrasília até o momento, eu considero algo imperdível. Para isso funcionar até o final, depende do público consumir, nós estamos nos esforçando muito, muito mesmo pra fazer a nossa parte. Eu vivo o projeto em tempo integral agora, porque acho que vale a pena me sacrificar para cumprir essa jornada tão especial e provar que existem bons quadrinhos aqui para um público maior. Fazer séries, apesar de todas as dificuldades que nosso mercado sempre apresentou, pode ser um caminho para construir bases fortes de leitores e aquecer o mercado. É uma empreitada rara e eu me sinto honrado de ter a chance de tentar.
 


 

O quadrinho pode ser adquirido no site da Guará, na Amazon e também na plataforma Super Comics.


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