Entrevista: Débora Santos e Zé Wellington falam sobre o processo criativo de “Luzia”

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Lançamento da Editora Draco, o quadrinho Luzia, de Débora Santos e Zé Wellington, apresenta uma adaptação do clássico romance do escritor cearense Domingos Olímpio, “Luzia-Homem“, publicado em 1903.

 

A história acontece no  Nordeste de 1877 a 1879, durante a Grande Seca,  responsável pela morte de até meio milhão de pessoas. Até as famílias abastadas partiram em busca de refúgio junto a parentes que habitavam as serras e o litoral. Foram chamados retirantes. Alguns  terminaram em abarracamentos precários, realizando trabalhos braçais em troca de uma parca ração diária. Neste contexto, conhecemos Luzia, mulher que sonha com uma vida melhor no litoral, enquanto sofre assédio de um soldado.

 

Para conhecer mais sobre o processo criativo da adaptação, conversamos com Débora e Zé. Confira a entrevista:
 
 
 

Luzia é uma adaptação de “Luzia-Homem”, romance clássico da literatura brasileira do escritor cearense Domingos Olímpio, publicado em 1903. Como surgiu a ideia da adaptação?
 

ZÉ: Domingos Olímpio nasceu em 1851 em Sobral, a mesma cidade em que nasci 133 anos depois. Além disso, Sobral, que é a cidade que moro desde sempre, é o centro de toda a narrativa. Adaptar clássicos da literatura é algo que se faz desde sempre no Brasil e no mundo. Em algum momento resolvi procurar por adaptações de “Luzia-Homem” e não encontrei nenhuma. Óbvio que fiquei maluco para ser o primeiro a fazer e então comecei a maturar essa ideia. Tinha lido o livro para fazer o vestibular há uns anos e lembrava de ter curtido bastante o ritmo e o tom aventuresco que embalava uma história de amor. Além disso, desde que escrevi “Cangaço Overdrive” estou numa vibe muito minha de escrever mais histórias com o Ceará como cenário. Era juntar a fome com a vontade de comer… Aí mandei mensagem para a Débora convidando para o projeto e ela aceitou.
 

Débora: Eu conhecia a obra e alguns pontos da história através de outras pessoas, ainda não tinha lido o original quando Zé me chamou pra trabalhar com ele. Mas fiquei pensando sobre ser a história de uma mulher fortona e conversei com uma amiga, Brendda Maria, que ama a obra e ficou empolgada com a possibilidade de existir uma adaptação em quadrinhos. E pensei, porque não? Quando li o livro, me surpreendi, é uma novela incrível e criei um carinho muito grande pelas personagens mais importantes da história: Luzia e Teresinha. 
 


 

Como foi o processo de criação do quadrinho?  Quais são as maiores dificuldades e maiores pontos de atenção em adaptações do tipo, principalmente tendo em mente a data da obra?
 

ZÉ: Nunca tinha feito uma adaptação antes, então o começo foi meio caótico. Li o livro uma vez sem pressão, marcando só coisas que eu achava legal de estarem na HQ (já sabendo que precisaria cortar muita coisa). Aí fui para uma segunda leitura mais crítica, fazendo um resumo de cada capítulo assim que os terminava. Com esses resumos, fui montar um argumento para o quadrinho, fazendo as alterações necessárias na história. Desde sempre eu e a Débora sabíamos que precisaríamos alterar algumas coisas. Domingos Olímpio até que traça uma visão progressista de mundo e das mulheres na obra original, mas ainda assim é um livro de 1903, escrito por um homem branco, ou seja, com muitas passagens que, vistas hoje, são racistas, machistas etc. Então para nós o mais importante era o conceito geral: temos uma história sobre assédio, com uma mulher que não se sente digna de um final feliz porque tem um corpo que foge aos padrões definidos pela sociedade da época. Ainda que tenhamos feito muitas mudanças, 90% dos diálogos na HQ estão tal e qual o livro, o que faz com que você não deixe de sentir a voz do autor original na história. Isso deve agradar ao “fandom” do livro.
 

Débora: Depois que Zé começou a construir o roteiro, passei a trabalhar nos esboços de páginas e estudo de personagens e íamos discutindo a história à medida que Zé ia escrevendo e revisando o roteiro, refletindo sobre os diálogos e pensando no que era importante deixar na história. Cada um cuidando da sua parte, mas sempre nesse diálogo. Dos esboços e pesquisa de referência visual, passei para a arte-final e depois passamos a ter a revisão do editor e alguns ajustes foram feitos também na arte-final. Como Zé já falou, optamos por cortar algumas falas e representações que achamos datadas e por um grande apreço à nossa querida Luzia, decidimos o nosso final pra ela: espero que gostem!
 


 

A história já teve adaptações no cinema e no teatro. Vocês procuraram referências em alguma dessas obras? Quais estudos foram necessários para a criação do quadrinho?
 

ZÉ: A última vez que vi a história sendo encenada no teatro foi quando era criança e não me lembro de praticamente nada. Me mantive também longe da adaptação para o cinema com a Claudia Ohana porque sabia que ela se distanciava bastante da obra original e não queria ser influenciada por ela. No fim das contas, tentei me manter distante de outras obras adaptadas para tentar criar a nossa versão inspirada diretamente no material original. Para o quadrinho eu li bastante estudos acadêmicos sobre a obra e sobre Sobral. Um livro, “O pictórico em Luzia-Homem”, do prof. Leite Jr., em especial, foi um dos que mais me ajudou a entender os muitos contextos e subtextos da obra.
 

Débora: A pesquisa teórica ficou por conta do Zé. Também preferi me distanciar da adaptação de Luzia-Homem para o cinema pelo mesmo motivo: uma adaptação bem distante da obra original. Cheguei a assistir uns trechos, mas preferi pesquisar outras fontes. Zé também fez uma pesquisa visual baseada nas pinturas de Reis Carvalho, pintor que retratou cenas cearenses e integrou a Expedição das Borboletas, financiada pelo Império na segunda metade do século XIX, era composta por cientistas brasileiros e tinha a intenção de conhecer o território cearense. Também busquei fotos em arquivos do IBGE e fotos da minha infância e família: região próxima à cidade de Iguatu, sertão do Ceará, era um território relativamente distante de Sobral mas com uma paisagem semelhante ao sertão sobralense. E o filme Canudos também foi uma referência para eu pensar as roupas dos personagens.
 

Quais outros projetos têm planejado para 2021?
 

ZÉ: No final de 2020 lancei uma noveleta de literatura chamada “Mata-mata” e quero trabalhar neste ano na adaptação dela para um projeto audiovisual. Também quero que 2021 marque o meu retorno para a literatura e já tenho um livro de contos pronto para ser lançado muito em breve. Mas não vou deixar de fazer quadrinhos: estou neste momento trabalhando na continuação de Cangaço Overdrive e num projeto infantil.
 

Débora: Esse ano tenho alguns quadrinhos que quero publicar online e talvez impresso, mas como são coisas que ainda estão bem no começo e em sua maioria trabalhos feitos em colaboração com outros artistas, pode ser que eu passe muito tempo trabalhando nisso, veremos. Não tenho pressa, na verdade, minha preocupação agora é contar boas histórias, mesmo que demore mais do que o planejado.


#Quadrinhos   ; ; ;


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