Inicialmente a personagem surgiu quase como uma brincadeira com ideias de Cultura Pop antiga misturadas com o conceito básico de super-heróis “homem isso”, “mulher aquilo” – o que aconteceria se misturássemos ambos? Fiz com o Anderson uma versão mais curta da aventura contra a Baronesa Fey Oldday que saiu exclusivamente nos EUA, na coletânea digital Inkshot, que organizei com ajuda dos amigos que depois fariam Sabor Brasilis comigo. Depois decidimos expandir e desenvolver o conceito em algo mais aprofundado.
A quadrinho mescla duas histórias, a de um/uma super heroina/herói e de um quadrinista em meio a um bloqueio criativo. O segundo caso teve alguma inspiração na vida real, digamos, na própria criação de Mulheromem?
Eu costumo dizer que as partes mais bizarras são sempre as que podem ser baseadas em algo real. Nesse começo os personagens Marcus e Monica, alter-egos de Mulheromem, começam a ter pesadelos sobre ser esse roteirista frustrado que está escrevendo a própria história da personagem. Quando desenvolvi o grupo de vilões de Mulheromem – ainda surgirão outros – comecei a notar que vários refletiam aspectos psicológicos de uma situação pela qual eu estava passando que hoje entendo como a Ansiedade que precede a Depressão. Uma autossabotagem extremamente perigosa. Me interesso muito pela relação entre Realidade e o Ficção, pela forma como criamos nossa mitologia pessoal e como isso afeta nossa percepção das coisas. Aí eu percebi que tinha outra coisa nas mãos.
Todo a ambientação da história de Muheromem é realizada nos anos 70. Temos a indicação clara disso pelo uso de gírias e o visual dos personagens. Por quê esta escolha?
Sendo um sujeito de 40 anos cresci com um liquidificador de influências que hoje considero nostálgicas por gibis de super-herói da Era de Bronze, seriados e desenhos animados dos anos 70 que eram exibidos no Brasil nos anos 80, como Mulher-Elétrica e Garota Dínamo, a Mulher-Aranha da Filmation. Tudo com um certo clima inocente, narração explicativa e dramática e uma certa dose de duplo sentido – ambos elementos típicos das produções daquela época. Aquela década foi marcada por uma liberação sexual que atingiu a várias faixas da sociedade, mas que também teve sua ressaca depois. Como criança isso não era percebido tão facilmente, mas hoje as reprises de filmes brasileiros nas madrugadas do Canal Brasil (que deseducaram Hermes & Renato, por exemplo) mostram o quão torta era essa percepção de liberação propagada na época. Só vivi 4 anos naquela década, devo sofrer de nostalgia pelo que não vivi – mas achei a ambientação perfeita para as aventuras de uma personagem cujos poderes têm ligação com hormônios energizados quanticamente. Fiquei muito contente com a forma que o Anderson e a Pri Wi interpretaram as referências que mandei pra complementar o roteiro – cada página nova que chegava era um derretimento de alegria.
Em um tempo que tanto se fala de diversidade, você traz um super heroína intersexual, “o melhor dos dois gêneros”. Como está sendo a recepção do público a ela? O que acha dessa busca por inovação no mercado nacional?
Como o gibi mal acabou de sair ainda está começando a ser distribuído e divulgado, estou esperando as primeiras reações – mas parece estar despertando a curiosidade nas pessoas. Já faz um tempo eu venho usando um banner em eventos de Gibi com uma ilustração da personagem e sempre provoca curiosidade e estranheza – o que acho ótimo. Essa não é exatamente uma história com subtexto social, como foi A Ameaça do Barão Macaco (meu gibi anterior), nós não abordamos diretamente a questão de gênero nela e não temos a pretensão de fazer um retrato político / social de pessoas intersexuais ou trans. Para isso acho ser necessário outro tipo de abordagem. Mas é uma história sobre dicotomias, dualidades – o nome da entidade mentora vem de uma divindade ligada a isso – e como elas se completam, como o/a própria Mulheromem, formada por um casal que discute entre si na mente da personagem. De qualquer forma um personagem intersexual não é algo que se vê muito na produção de Gibi e eu quero justamente isso: poder contar histórias com ideias interessantes e instigantes seja em que gênero de narrativa for, sem preconceito. Estou adorando o momento criativo atual dos gibis brasileiros e quero ver cada vez mais pessoas das origens mais diversas criando e se expressando. Estamos construindo um meio cada vez mais plural e não há nada a temer.
Certamente esta primeira história “A História Inserta” tem um final misterioso e instigante. Já está em produção sua continuação? Alguma previsão de lançamento?
Sim, estamos no início do desenvolvimento e já sabemos o que acontece, como a história acaba. Estamos só aguardando o Anderson terminar sua próxima graphic novel, A Fonte, para eu voltar a perturbá-lo com meus roteiros. Eu adoro a sensação de absorver uma história em partes, o aspecto episódico dos gibis e seriados (desde que não maratonados de tanta ansiedade que a gente fica) com um enredo micro que se fecha ali naquele capítulo e um macro que continua, o suspense que instiga a querer saber mais na próxima semana, mês ou ano. E por acaso será, eu creio, no primeiro semestre de 2017 que a segunda parte de Mulheromem vai chegar, com quase todas as respostas pra esse enigma metafísico e metalinguístico. Precisa sair, senão a Falta vai me pegar.
O Hector tinha já tinha algumas idéias de como seria a personagem. Ele me enviou muitas referências de filmes, fotos e hqs antigas para me explicar como ele imaginava o clima e o visual da personagem. Juntei as ideias dele com as minhas e fiz a primeira versão (que era um pouco masculinizada demais) depois de um tempo chegamos na versão final (mais feminina).
O material de pesquisa do Hector é muito bom e o roteiro é bem detalhado com links e imagens… isso facilitou muito o meu trabalho. Lendo o roteiro eu já conseguia imaginar muito do ambiente e dos personagens e tinha liberdade pra incluir outros elementos que eu achasse interessante.