Criado por Francylene Silva - 26 de agosto de 2015 às 19:00
Lançamento do selo editorial Quadro a Quadro, a HQ “La Dansarina”mostra a visão de um menino comum em meio a terrível gripe espanhola, em 1918, tendo como cenário a capital paulista. Retorno da parceria de Lillo Parra e Jefferson Costa, que trabalharam juntos em A Tempestade, da Editora Nemo, a trama intercala momentos do protagonista Petro aos 12 anos e já idoso.
Para contar um pouco mais sobre o lançamento e ainda sobre a carreira, Lillo Parra e Jefferson Costa concederam uma entrevista exclusiva ao MAIS QI NERDS onde falaram, entre outros assuntos, sobre o processo de criação de “La Dansarina” e como surgiu a parceria.
Lillo Parra
MAIS QI NERDS – A sua carreira como roteirista é relativamente nova, tendo início em 2011 com o volume 2 da Coleção Shakespeare em Quadrinhos ,“Sonho de uma noite de verão”, da editora Nemo. Porém já com esse trabalho recebeu indicação de roteirista revelação no Troféu HQ Mix de 2012. Ao que você acrescenta a qualidade de seus roteiros? Acha que sua longa experiência com artes cênicas possa ter contribuído com o seu bom desenvolvimento como roteirista?
Lillo Parra – Acho que o grande lance de “Sonho de Uma Noite de Verão” foi ter sido selecionado pro PNBE. Ir para as escolas foi uma coisa muito legal.Além de ter sobrado uns cascalhos pra mim e pro Wanderson, claro.
Eu acredito que os anos de teatro contribuíram sim em minha carreira como roteirista, sobretudo os 10 anos em que fui integrante do Teatro Popular União e Olho Vivo (um dos mais antigos grupos do país). Ali, por ser um grupo de teatro popular que se apresentava, literalmente, em qualquer pedaço de chão da periferia de São Paulo e para os públicos mais diversos, aprendi muito mais do que atuar: aprendi a contar histórias. E é impressionante a quantidade de pontos de encontro entre as duas linguagens. Se você observar um texto teatral, poderá notar semelhanças estéticas com um roteiro de quadrinhos: ambos são suporte para o produto final (no caso do primeiro, a peça, e no segundo, o gibi); os dois possuem um texto aberto que depende da participação do outro (atores, desenhistas, cenógrafos, iluminadores, coloristas e toda uma equipe de profissionais), o que lhes confere uma característica única; e, por fim, tanto o teatro quanto os quadrinhos trabalham com a sugestão e interpretação daqueles que o assistem/lêem, convidando-os a participar de maneira ativa na construção da história, e criando, portanto, uma experiência artística profunda, com um entendimento muito mais subjetivo do que, por exemplo, o cinema e a TV, em que o produto chega praticamente pronto. Acho que as editoras podiam perceber melhor essa relação entre quadrinhos e teatro e investir nisso. Tenho certeza que sairiam coisas lindas.
Em 2013 você ganhou o prêmio na categoria “adaptação para os quadrinhos” com o volume 4 da coleção,“A tempestade”. Os seus primeiros trabalhos ligados a arte que tanto vivenciou foi por acaso ou planejado? Como surgiu a oportunidade de trabalhar nessa coleção?
LP – Não foi planejado, pelo menos não por mim. Mas também não foi exatamente acaso… Na verdade, eu e o Wellington (Srbek, editor da coleção) já éramos amigos, ele conhecia minhas resenhas de quadrinhos no blog Gibi Rasgado e sabia da minha experiência com teatro. Sem dúvida alguma isso foi um fator determinante na decisão de me convidar para fazer parte da equipe. E eu topei na hora. Tava me borrando de medo, mas aceitei.
E “A Tempestade” é um álbum especial pra mim. Foi nesse trampo que conheci o Jeff e nos tornamos amigos. Mal terminamos o álbum e já começamos a discutir a possibilidade de uma nova parceria. Então a história de La Dansarina passa diretamente por esse trabalho.
Qual foi sua preparação para escrever o roteiro de “La Dansarina”, ainda mais por se tratar de uma ficção histórica?
LP – La Dansarina é uma idéia muito velha. Nos extras do gibi eu falo bastante sobre isso e contar isso aqui só estragaria o barato de quem vai comprar o gibi. Mas de maneira resumida posso dizer que essa história nasceu após a leitura do artigo “La Dansarina: a gripe espanhola e o cotidiano na cidade do Rio de Janeiro”, da professora Nara Azevedo de Brito, da Fundação Oswaldo Cruz. Ela conta ali aspectos terríveis do caos que se instaurou na Capital Federal em 1918. Para quem tiver interesse, o link tá aí >LINK
Isso foi em 1999 (embora às vezes me bata uma dúvida se não foi 98), ou seja, foram 15 anos de construção da história dentro da minha cabeça. Quando ela estava quase pronta, fiz o roteiro e mostrei pro Jeff. Juntos chegamos numa segunda versão, que foi a que ele traduziu na arte que vocês poderão conferir no álbum. E isso é muito importante: eu criei a história na minha cabeça, mas ela só aconteceu da maneira que vocês lerão porque o Jeff a recriou na cabeça dele.
É comum acharmos que o roteirista escreve e o desenhista desenha, mas não é bem assim que acontece durante a produção de uma HQ. A história é contada pelos dois. Essa é outra herança que trouxe do teatro: a consciência de que você depende do outro, pois é uma obra conjunta, então quanto mais afinada for sua parceria, melhor será o resultado final do trabalho.
Em relação ao fato de ser uma ficção histórica, é bom dizer que La Dansarina não é um livro didático que conta a história da epidemia de gripe que dizimou milhões em todo o mundo. La Dansarina é uma ficção. Uma história inventada sob um fundo histórico real. E acaba aí o didatismo. É a história de Petro, um menino de 12 anos que se vê metido numa situação terrível e precisa resolvê-la.Na verdade, a história conta como uma pessoa comum, um menino que trabalha como engraxate, enfrentou aquele momento desesperador. É a visão de um menino do povo frente a um evento extraordinário.
Quais características acha fundamental na criação de um personagem? O que acha que um bom roteiro de HQ deve ter?
LP – Uma história bem contada. E não adianta procurar isso em manuais de como se escrever um roteiro. Esses manuais são ótimos pra te introduzir no tema, mas não vai te ensinar a contar uma história.
Quer fazer um bom roteiro? Faça cursos, mas, sobretudo, assista filmes, veja peças de teatro, ouça músicas boas, observe as pessoas (a maneira como elas falam, riem e andam) e, a partir de agora e pro resto da tua vida, leia muitos livros (inclusive de gêneros e autores dos quais você não gosta). Ninguém vira um bom roteirista lendo apenas Super Homem ou Homem Aranha.
Em relação aos personagens, eu os trato com o mesmo carinho do tempo em que era ator. Eles devem ter brilho nos olhos. Um personagem deve fazer o leitor ter certeza de que o conhece. Ou que poderia tê-lo conhecido. Um bom personagem tem que trazer o leitor para o mundo dele, tem que criar uma ligação imediata com a memória afetiva do leitor. Ele tem que ser reconhecível, ser humano, ter vida. Ele tem que te olhar nos olhos e fazer você acreditar nele. Esteja o personagem no Brás ou em uma galáxia muito distante, tenha uma barba branca ou orelhas de rato na cabeça, o leitor deve se afeiçoar a ele. Mesmo que seja para odiá-lo no decorrer da história.
O que acha do mercado nacional de quadrinhos?
LP – Tá melhorando, mas tem muito que se remar ainda, sobretudo no que diz respeito às condições de trabalho e oportunidades de publicação para o autor independente. Por parte da editoras, o investimento na produção de quadrinhos nacionais ainda é muito baixo e – muitas vezes – extremamente direcionado para adaptações literárias e álbuns didáticos e paradidáticos, que objetivam, principalmente, as vendas governamentais. Só que o PNBE 2015 acabou de ser suspenso, então até esse tipo de investimento está agora ameaçado. Em São Paulo tem o PROAC, do Governo de Estado, que hoje é a principal ferramenta de fomento de quadrinhos autorais no país. La Dansarina, como muitos outros, só saiu por causa dele. O ganhador do HQMIX este ano é fruto do PROAC ( A Vida de Jonas, do Magno Costa), a publicação independente vencedora também (Quaisqualigundum, do Calil e do Roger Cruz). Ou seja, o modelo funciona e tem promovido grandes trabalhos. Mas e quem não tem PROAC, como faz?
Com a ampliação de um modelo como o PROAC para mais estados – ou até em âmbito municipal – teríamos mais trabalhos originais atingindo seus públicos locais. Se houvesse então algum tipo de contrapartida federal, onde parte da tiragem fosse distribuída às escolas nos mesmos moldes dos programas já existentes (como o PNBE), resolveríamos o problema da distribuição (o que num país do tamanho do nosso é um problema bem grande e caro). Mas a liberdade criativa oferecida pelo PROAC aliada ao sistema de distribuição já existente do Governo Federal ainda é um sonho muito distante. Mas me parece muito claro que as leis precisam ser ampliadas, não no sentido paternalista, mas de fomento a uma vertente artística (sim, somos artistas) para que ela possa produzir seu trabalho e formar público.
Outro caminho é o patrocínio via Leis de Renúncia Fiscal. Mas essa opção é – para o autor independente – simplesmente inviável. Isso porque a Iniciativa Privada continua interessada (com raríssimas exceções) em ser mecenas de quem não precisa. E estamos falando de muita grana (muita grana mesmo) que deveria ser paga em impostos e revertidas em bens culturais para a população mas é utilizada em superproduções que atingirão apenas uma pequena parcela da sociedade. Tanto que é só falar em “descentralização da cultura” ou começar uma discussão sobre as falhas da Lei Rouanet e as grandes empresas, através de seus artistas patrocinados, já começam a gritar. Parafraseando o dramaturgo e grande amigo César Vieira: é servir caviar em travessa de prata pra quem já tá lambuzado de faisão. Então esse é um caminho que não tá aberto neste momento. Talvez com a revisão do modelo, que é uma proposta do próprio Ministério da Cultura, a coisa melhore.
Somos capazes de produzir trabalhos que se emparelham com o que de melhor é publicado em mercados já consolidados, mas para que isso aconteça de fato e chegue ao público, é necessário ter mais gente acreditando e investindo. O financiamento coletivo é um caminho, mas nem sempre a coisa rola. Tem muito projeto bom que não consegue atingir a meta e acaba nem saindo do papel. O mercado é infinitamente melhor do que era há dez anos. Mas tem muito coisa pra melhorar ainda.
Você tem uma longa carreira como quadrinhista, como foi o início?
Jefferson Costa – Comecei em 2002 em fanzines coletivos, fazendo estórias curtas de uma, duas, quatro páginas, aliás, um grande laboratório de estudo. O desafio de contar de forma concisa, precisa, e ainda interessante. Nesse mesmo momento, desenhei 10 páginas (uma hq longa? até então sim) do Quebra Queixo, personagem do Marcelo Campos, para o álbum Quebra Queixo technorama vol.1( primeira publicação com editora, e rendeu indicação como desenhista revelação).Continuei publicando hqs curtas em coletâneas. Logo, topei um desafio diferente…pulei de hqs longas de 12 páginas, para uma pequenina de 300 páginas (não façam isso), Kiss me Judas, novela gráfica da editora americana Terra Major, adaptação do livro e roteiro de cinema. Aprendi muito com tudo isso.
Quais artistas você tem como referência? Qual sua HQ/graphic novel/mangá (etc) favorito no momento?
JC – Flávio Colin, Javier Olivares, Mike Mignola, Jorge González, Genndy Tartakovsky, Jack Kirby, Bruno D’angelo, Marcelo Campos e Alex Toth… quero um dia contar histórias como eles. Não tenho uma favorita… o mais recente que me vem a mente é Habibi e Três Sombras, que já faz uns 3 anos que as li.
Pode explicar como foi o processo de criação de La Dansarina e quanto tempo durou até a conclusão?
JC – O meu objetivo é identificar a intenção de cada cena de uma história, o porque dela existir dentro dessa história. a intenção de cada personagem, de cada ação das personagens. A tradução dessas intenções em imagem é o objetivo do meu desenho,… pelo menos é o que tento fazer. Dito isso, foi com esse norte que juntos encontramos a segunda versão do roteiro, em algumas poucas reuniões. Depois disso, é planejar quebras de páginas, esboços pequenos de páginas e personagens, seguindo as intenções identificadas anteriormente e pesquisa de referências visuais de época, cores, etc. Satisfeito com essa etapa de planejamento e pesquisa, é desenhar. Como tive um acidente grave que me afastou das atividades por uns 4 meses durante a produção, fica meio difícil precisar a duração… mas acredito que foram 4 meses e meio até as cores finais.
Como conheceu e surgiu a parceria com Lillo Parra?
JC – A Marcela Godoy, parceira no Dama do Martinelli, me indicou para a editora Nemo que estava formando novas parcerias para as próximas adaptações. O editor foi o culpado desse encontro. Findado o trabalho, já estávamos planejando fazer algo juntos, mais autoral.
Além de seu trabalho como quadrinhista, você trabalha como animador, produzindo para séries animadas como Historietas Assombradas para Crianças Malcriadas e Megaliga de VJs Paladinos. O que acha sobre esse mercado no Brasil? Quais as expectativas quanto ao futuro das animações no país?
JC – Fui animador na Megaliga, Fudêncio… em Historietas Assombradas não animo, atuo como desenhista de personagem, desenhista de cenário e storyboard. O mercado de animação no Brasil ainda não é forte, mas está a caminho de se firmar. Ótimas produtoras com excelentes projetos de animação, com muita qualidade, estão trabalhando para isso. O futuro parece promissor.
Além de La Dansarina, quais os próximos trabalhos que está produzindo ou para lançar?
JC – Em produção está a novela gráfica “Arcane Sally & Mr. Steam”, história de David Alton Hedges, para o mercado americano, em seguida virá “Matka”, roteiro do Rafael Calça.
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